Agora que todos se calaram
podemos falar nós tranquilamente. É o caso da execução fiscal contra um
cadáver. Há várias coisas que não foram notadas, nem ditas e é preciso notá-las
e dize-las. A única coisa notada foi a violência
do procedimento. Ninguém estabeleceu o significado dessa violência. Ninguém
estranhou, sequer, que um apartamento fosse levado à praça e vendido por trinta
mil euros, valor francamente abaixo de qualquer valor possível em mercado.
Ninguém estranhou que os vizinhos não houvessem notado nunca o cheiro da
putrefacção do cadáver que ao longo de nove anos ali permaneceu. Ninguém
estranhou que a vizinhança, sempre tão metediça, sempre abelhuda, não houvesse
notado simplesmente o desaparecimento de um habitante conhecido do prédio.
Ninguém perguntou, sequer, se a quantia exequenda não teria sido originada
depois de se ter extinguido qualquer obrigação possível do executado, i.e.
depois da morte. Na tugária, segundo nos dizem, nasce-se devedor, mas não há modo
de fazer um cadáver prestar contas, a não ser no dia da Parusia e não será
propriamente o fisco a poder pedi-las nesse dia da transfiguração da terra e
dos céus. A violência do procedimento não assombra. É a mesma violência das
forças de segurança, só que exercida pelos homens do fisco. A besta média do
funcionalismo tuga tem tiques de polícia à moda do sítio. E entende que o poder
é o poder de ser polícia. Pedir satisfações. Causar problemas. Obter vantagens
pessoais imediatas da posição que, mesmo acidentalmente, ocupa. Negociar com as
vítimas o perigo da sua espectral intervenção nas (muitas vezes grotescas) proibições
que a lei estabelece e onde lhe caiba algum tipo de papel. E algumas proibições
parecem feitas apenas para propiciar este tipo de intervenção dos funcionários.
Tal é a administração pública legada pelo salazarismo e enlouquecida em "democracia". É isto que resta da
função que Salazar concebeu para a administração central do estado: ordenar,
vigiar e punir, num território concebido e organizado à imagem de uma prisão,
de um hospício. Avaliada pelos funcionários do fisco e vendida por trinta
mil euros, a casa executada por via da pretensa dívida de um cadáver, valeria
certamente e no mínimo quatro vezes mais. Aquele preço é o termo de um longo
negócio de uma máquina bem montada pelos chefes de finanças. A metade do
dinheiro que se perde, é perda directa da vítima. A outra metade é dinheiro que
alguém ganha e a vítima também perde. Finalmente o preço formal e final do
negócio é a consumação da tragédia. Se um particular declarar em escritura a aquisição de uma casa por valor inferior ao do preço estimado do bem em mercado, o fisco abre processo (que pode acaber na penhora e venda da casa por um quarto do seu valor). Mas se os funcionários do fisco fazem eles próprios uma negociata assim, nada há nunca a investigar. Oorre que fazem muitas negociatas assim. Fazem sempre negociatas assim. E até têm "sindicatos" para negociatas assim. (A "grande loja nacional" visa ser uma federação organizacional para coisas destas e parecidas). Às vezes o património do devedor (real ou
fictício) some-se por um quarto do valor e ele continua devedor por isso. Pode
eventualmente até ser pedida a sua insolvência e porventura até e também a sua inabilitação punitiva. Eis pois a execranda tugária que é em tudo a abominação aos olhos de Deus e dos homens.
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