Prossegue, como se fosse a coisa
mais normal deste mundo, o processo contra dois directores de teatro porque uma peça dramatiza (não sabemos se bem se mal, o que de resto é indiferente) a vida
aventurosa da filha de Silva Pais, que escolheu viver e viveu na Cuba de Fidel. Os
arguidos estão a ser perseguidos nos tribunais (!) por terem imputado (ou consentido a imputação) a Silva Pais, “patrão”
da PIDE-DGS, um envolvimento no assassinato de Humerto Delgado, figura estranha
da oposição portuguesa a Salazar que, estranha ou não, não podia ter morrido espancado até à morte pela escumalha da António Maria Cardoso que (tal como a
labregalhada da guarda-fiscal de Sacavém viria a dizer várias décadas depois)
tratou de inventar que o general teria morrido por disparo acidental. O
paralelo das situações serve para mostrar que as imaginações desculpantes se
eternizam e que a escumalha desta laia, tendo embora uns cérebros de galinha em
cabeçorras de burro, lá vai conseguindo aprender estas coisas e reproduzi-las.
Os protestos chovem. Os sobrinhos de Silva Pais que lhe representam o cadáver
prosseguem, em todo o caso. Pretendem a defesa da memória de pessoa falecida. O Fernando Silva Pais era pessoa. Mas a direcção-geral da PIDE era função. Aliás a organização foi declarada criminosa pelo Direito local e talvez não se possa responsabilizar o autor de uma peça de teatro sem vir discutir, também, a declaração juridica daquela organização "policial" como criminosa. Está (não estará?) um bocadinho prejudicada a defesa do bom nome do director geral de uma organização declarada criminosa por texto legal. Estão todos errados, portanto. E tudo errado. Todos os
protestos traduzem uma exigência de absolvição. Mas isso ignora o processo como
ultraje. Como pressão. Como ameaça de um arbítrio selvagem. Ignoram estes
protestos a humilhação da submissão de um autor teatral à escumalha da reinserção social, ignoram os absurdos de se ser interrogado quanto aos factos (estes factos, os da autoria de uma peça de teatro) sem defensor e por assistentes sociais asininas, ignoram o absurdo insultante de tudo (e de todos
os pontos de vista) que se traduz na transferência para debate e decisão
penal de uma tarefa que é da crítica literária. Ora nem Luís XIV consentia já
em tal coisa. E não pode conceder-se ao absolutismo do patego, do labrego, do
lumpen-funcionalismo, o que mesmo o absolutismo régio recusou assumir e conceder. Corneille,
Racine e Moliére não tiveram da Coroa razões de queixa análogas (e morderam
bastante, porque os reis não viram que devesse negar-se no seu século, o que
havia sido concedido aos romanos no tempo de Plauto, ou aos gregos no de
Menandro). A exigência da absolvição é disparatada se o próprio processo é – e nisso
não há dúvida nenhuma - delitual (como se diz em Português). Criminoso, como se diria em Francês. Os protestos são também disparatados porque
insistem na “liberdade de expressão”. Outro disparate quando o que está em
causa é mais intenso e é, no caso, a liberdade de criação. Falar da liberdade de expressão em vez da
liberdade de criação, da liberdade de investigação (também evidente, aqui), ou, até, do imperativo de
consciência (de que não pode abstrair-se), revela que nem os que protestam têm noções claras de quanto está
em causa. E não têm. É livre a criação cultural. É livre a investigação
científica e histórica. E ninguém pode calar a consciência do homem, porque a
consciência do homem é a vontade de Deus, diziam os românticos cheios de razão
nisto como em muitas outras coisas. O processo é ele próprio um delito. Ou um crime. Traduz nítida condução contra Direito, ao menos no plano indiciário. E portanto, desde logo no plano do debate político, os
magistrados que supervisionaram (procurador-coordenador e procurador-director) uma tal acusação e
o magistrado que a tenha subscrito (procurador adjunto), como o juiz que subscreveu
a pronúncia (se a tiver havido), como o juiz (de julgamento) que recebeu a pronúncia (ou a acusação, se não tiver havido pronúncia) e deixou
prosseguir o processo com o despacho (de minuta) no qual seguramente declara que
“não há nulidades e o tribunal é competente”, esses senhores ou senhoras (o
sexo só é relevante nos animais superiores e não nas funções de estado) devem
ser confrontados com a incompatibilidade radical entre a sua actividade
(nociva) e os pressupostos do sistema. O grande drama é que a esquerda que
protesta é igualmente inepta. E nos mesmos termos. E a imbecil direita que ri,
não sabe do que está rindo. Um tal processo traduz a tugária. A choldra. Asquerosa. Traduz também a
inviabilidade radical de, em qualquer nível, poder esperar-se o cumprimento das
tarefas mínimas da independência (ou até da mera autonomia) política, no quadro da
fidelidade mínima aos legados culturais (e jurídicos) que definem a civilização
europeia. Isto não é europeu. Isto não é um país. E parece-nos duvidoso que
isto seja gente. Este é o problema. E este processo é uma das suas
demonstrações. Nem sequer a mais grave, embora tão repugnante como qualquer das
outras. E ainda falta notar estes processos como pretexto de extorsão. A corja ganha com isto e não ganha mal. São as taxas
de justiça. (Mas não apenas as taxas de justiça). Um absurdo destes não pode custar menos de mil euros. Mais cinco
mil se alguém tiver a ingenuidade de imaginar que há tribunal constitucional.
Tudo isto está abaixo de qualquer classificação possível. E as críticas que o
ignorem, estão no mesmo nível.
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