O abominável Carreira das Neves veio à estacada com mais uma. No Expresso ainda em distribuição. (Possa Deus perdoar-nos tão específica referência e proteger quantos se expuserem, por culpa nossa, à pretensa erudição da repulsiva criatura). Abel era pastor e representa os campos. Caim, as cidades. E o conflito entre ambos é o conflito entre o igualitarimo dos campos e as cidades onde o igualitarismo morre. E com esta semi-ideiazinha que há-de ter-lhe parecido luminosa, vem contra Saramago, claro, como toda a corja. Até o Pulido Valente (por assim dizer) sacudiu os seus torpores alcoólicos para vir salpicar o Público com o respectivo vómito. Mas também o abominável Carreira das Neves parece estar bêbado. Em primeiro lugar a (por assim dizer) fraternidade dos campos não é o igualitarismo. Todas a comunidades rurais foram, são e serão (muito) estritamente hierarquizadas, porque não há família, clã, ou aldeia sem hierarquia. Em segundo lugar, há cidades e cidades (mesmo no Velho Testamento). Há a cidade que o trono olha como sua e o pode ser, ou não. Há a cidade que se sente aliviada pela distância a que está do trono. Há portanto – e deste ponto de vista - três cidades (a cidade do rei, a cidade que não quer ser a cidade do rei e a cidade sem rei). São muito diferentes e continuarão a sê-lo ao longo da História. Com a Grécia e com Roma as cidades sem rei (e às vezes, apesar do rei) definirão a urbanidade como padrão de igualdade dos que, a tal luz, forem iguais (são sempre muito mauzinhos para os camponeses, os rapazes das cidades, riem-se sempre muito deles e por nenhum modo lhes concederam alguma vez estatuto de igualdade). As cidades dos reis viverão no quezilento espartilho das cortesias, como cidades de gente servil que chega a enjoar o próprio rei. As cidades que resistem ao trono, são troçadas pela corte (raramente dispõe o trono de melhor remédio), que lhes quer tratar os cidadãos como estes tratam os camponeses (embora sem o conseguir sempre). As Histórias das Literaturas demonstram suficientemente isto. Há uma literatura cortês, que não é a literatura da urbanidade. E os campos erguem a tradição oral das suas comunidades, descoberta e redescoberta pelas cidades nos testemunhos literários de um período de maturação, de exílio, de repouso, ou da nostalgia deles. São “quadros sociais do conhecimento” claramente distintos, onde o “nós” e o “eles” estão muito bem definidos. Estes campos – ao contrário do que diria a narrativa bíblica se assim fosse, se o abominando Carreira das Neves pudesse ter razão - continuaram a ter herdeiros da sua fraternidade (hierarquizada demais para poder ser completamente fraterna). E no Livro – coisa de que anda a malta toda um tanto esquecida, neste pseudo-debate – só Caim teve descendentes. Como se fosse um segundo Adão sempre excessivamente terrestre, que pelas suas mãos quis fazer-se a si mesmo e se fez repugnante (como Carreira das Neves). Segundo Adão é um epíteto muitíssimo sério devido ao próprio Cristo (não se levem demasiado a sério os reflexos da pretensão de Caim). E as Escrituras vão registando, séculos fora, a mesma pergunta que lhe é feita a ele, Caim, e continuará a sê-lo aos seus descendentes. É sempre a mesma coisa (no essencial) - “ que andas tu a fazer?”… Um pouco como quem diz: “se te fiz homem, porque fuças tu como um porco?”… -“porque rosnas tu como um cão?”, -“porque uivas tu como um lobo?” (porventura, mesmo: - “porque grasnas tu como Carreira das Neves?”)… São as interpelações que o Saramago faz suas, também no essencial. Há um Deus no sórdido? Não, claro. Mas a gente olha para os papistas e parece que sim. A leitura de Saramago está legitimada pelo testemunho actual da sordidez à qual reage. Terá isto sempre sido assim? Virá esta monstruosidade dos textos? -perguntou-se. Foi ver os textos na versão definida por canónica pelo papismo. E concluiu que sim. É a conclusão dele. Devíamos poder discuti-la. Mas estes imbecis acham-se legitimados, não para a discutir, mas para censurar. Para admoestar. Para se porem em bicos de pés e -imagine-se- para se largarem a ensinar (à moda deles). Labregos. O abominável Carreira das Neves até vem com a Lei do contexto. Tratemos então de lhe meter a lei do Contexto onde ele precisa que lha metam: Não fez o papismo uma moral que cristaliza todas as taras e à luz da qual se subverteram todas as leituras das Sagradas Escrituras? Não é o papismo a nova sodoma desde a Austrália ao Canadá, passando pela Irlanda, Polónia, Hispânia e América do Sul? Não é a moral do papismo que vicia os textos? E literalmente os vira ao contrário? Não foram os papistas quem fez as traduções das quais se serviu Saramago? – Sim. Outrossim. Sim de novo. Sim, ainda. Sim, evidentemente. Poderia Saramago ter visto nos textos outra coisa? Podia. Se não estivesse na posição de Saramago. Mas, enfim, os cães do papismo ladram (e é verdade que ladram) e o Saramago passa (sendo evidente que passou).
Tuesday, November 3, 2009
O papismo ladra e o Saramago passa
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