O julgamento de inimigos, por
inimigos, não é coisa que deva tomar-se a sério como julgamento. Mas não é
necessariamente expressão de injustiça. Pode haver vitórias justas e o “julgamento”
do inimigo substitui hoje (e desde há sessenta anos) o desfile dos cativos na
parada do triunfo. Aos cativos a opção de recusar tal desfile. E muitos o recusaram
em todos os séculos. Os judeus puseram no You Tube as cenas do julgamento de Eichmann. E este documento é exemplo interessante. Mas a figura do
cativo é inenarrável. Trata-se, em síntese, de um funcionário. Muito
funcionário. Administrativo. Muito administrativo. Que mesmo diante do inimigo (a
querer matá-lo, como é natural) se queixa da injustiça de o terem preterido na
promoção. Era apenas um tenente-coronel. Isso agastava-o. O execrando homúnculo
poderia ter processado a destruição de resíduos. Podia ter supervisionado uma
cadeia de incineração de lixo. Podia ter dirigido um sistema de transporte de
mercadorias. Um serviço de limpeza urbana. Podia também, como qualquer outro
funcionário que assim seja, completamente funcionário, ter sido porteiro de um
bordel, empregado de bengaleiro, vigilante de um mictório. Como podia ter sido
inspector tributário, agente da PJ, instrutor disciplinar, à moda de quase todos os sítios, ou, ainda, juiz à moda
da tugária. Um funcionário, muito funcionário. Gente que a si própria se fez... isso que é e não merece grandes indagações. Gente capaz de todas as vilezas, de todas as torpezas, de todos os crimes,
com a inexpressividade de quem faz o que lhe mandam. Disciplinadamente. E como
único estremecimento de alma terá apenas a mágoa da falta de promoção bastante e a seus olhos merecida. (Logo essa gente que, justamente, não devia sequer
ter existido). Gazearam Eichmann. E nesse sinistro espectáculo expressaram o
comprazimento de quem vê morrer o inimigo. É expressão do ódio, claro. Natural,
portanto. Mas o gazeado não odiava sequer os que prendeu e matou. Fê-lo (e
admitiu-o) porque lho mandaram. E isso não é verdade, embora o tenham mandado
fazer algumas coisas. Ele fê-lo porque era um funcionário e nisso se fez homúnculo. Sub-gente, por ironia do destino que quis. Porque
nascemos gente, mas fazemo-nos homens. Ou não nos fazemos homens. Ele fez-se
homúnculo. Como boa parte dos funcionários. E por isto (não por outra coisa) fez quanto admitiu
ter feito. Em democracia, os serviços de justiça, os serviços prisionais, a administração pública, abarrotam
desta gente. (Embora nem sempre esta gente se faça norma, isso só ocorre em terras especialmente desgraçadas como a tugária infecta). São excremento da paz. E excremento da guerra. Gente mais digna de
desprezo que de ódio. Mas diante de quem é incontível a aversão. É gente que deve ver
inviabilizada qualquer influência na vida alheia. Isso sim. Imprescindivelmente,
sim. A origem disto não é o nazismo. É a burocracia. E este desgraçado não era
sequer cruel. Era apenas um funcionário banal. Sem coragem. Sem determinação.
Sem convicções. Nele nada havia que amasse ou odiasse. Agia de tal modo que a máxima da sua vontade pudesse ser, a um tempo e sempre, expressão da vontade de quem nele mandava. Foi o que disse aos "juízes" do inimigo, diante de quem se levantava, deferente. Esteve sempre radicalmente isento
de quaisquer qualidades morais, portanto, (como diria alguém). É o produto
acabado da burocracia do estado contemporâneo. Nem sequer ridículo como a
literatura do Séc. XIX imaginava que o seria sempre. Mas sem deixar de o ser. E
sendo em tudo muito pouco. Porque, justamente, era funcionário. E muito. Completamente,
até. Isso o quis. Isso o foi. E assim o gazearam porque o quiseram. Mas nem ele quis mais digna morte. Possa tal criatura ser lembrada como a radical antítese de tudo o que um soldado é. E radical antítese de tudo o que um homem tem que ser para permanecer fiel a si próprio.
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