A vida intelectual portuguesa (por assim dizer) produziu um fenómeno estranho: a inutilidade de publicar. Nenhuma indústria da cultura é aqui minimamente viável. Na imprensa só se lêem os jornais desportivos (pelo menos a sul do Douro). Na televisão só tem público o dramalhão, a tragédia, a comédia barata ou grosseira. As páginas ou programas pretensamente culturais fazem chorar a rir. Nas editoras o que se vende, com segurança, são manuais escolares ou equivalente, com uma ou duas excepções cuja raridade as sublinha como excepções. Além delas, quem quer que publique é imediatamente suspeito de “armar” ou de ser porta-voz de grupos ou interesses dos quais já ninguém suporta ouvir mais nada, ler mais nada, ver mais nada, saber mais nada. Tudo tendo minado pelo compadrio, pela inépcia, pela indigência, pela prostituição intelectual, pela vacuidade e pela repressão pretensamente penal dos pretensos crimes de injúria, as “entidades oficiais” começam a sentir a necessidade imperiosa de ficcionar uma vida cultural. E instituem prémios cuja atribuição faz rir, outra vez, na maior parte dos casos. Até a grotesca “Ordem dos Advogados” instituiu um estúpido “prémio literário” de onde acabará por emergir, pela insistência, uma estúpida publicação qualquer. Como se o prémio compensasse a repressão à liberdade de expressão, quase todos os anos inutilmente exautorada em Estrasburgo. Mas os que insistem em publicar – mesmo que não seja no quadro de tais “distinções” ou “prémios” – podem apenas e vagamente dizer que publicaram e jamais que foram lidos. Dirão que publicaram como quem se conta a si próprio, outra vez. Só o anónimo adquiriu paradoxal credibilidade. A blogosfera demonstra-o. O anónimo adquiriu a credibilidade da modéstia e a do perigo que ameaça o militante. O anónimo tem a credibilidade de quem diz o que não pode ser dito sem risco desproporcionado. É alguém cuja identidade se não conhece, mas de cuja velada presença se sabe, à partida, querer falar de coisa mais relevante do que de si mesmo. E sobre esse anónimo se acastelam, é verdade, mil nuvens de perigos sem fim. Esta é a tristíssima realidade de trinta anos cumpridos sobre a restauração da democracia parlamentar. Foi uma democratização traduzida na proliferação (ainda maioritária) de sucedâneos do salazarismo, aos quais falta – em todo o caso e sem excepção – qualquer desígnio maior do que eles próprios. O salazarismo era coisa parda e estúpida, sobretudo de acordo com os seus próprios pressupostos. Quem morreu em combate teve azar e voltava de noite e à socapa, por exemplo. Morreu por esvaziamento, o salazarismo. Estes, porém, seriam a multiplicação do vazio, se do nada alguma coisa pudesse vir. De trinta anos cumpridos de democracia parlamentar, resultou, apenas – no que à vida intelectual respeita – a nova glória de novos escritos clandestinos, acolhidos em refúgios da Net onde a “autoridade local” não pode chegar. Que tal?
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